Bem-vindos ao primeiro “brat summer português”

Mas a energia de fazer inveja às melhores raves não chegou ao Primavera Sound Porto apenas pela cabeça de cartaz do primeiro dia. É evidente o espaço que a música eletrónica está a conquistar no festival que este ano tem um dia extra, o domingo, dedicado precisamente à música eletrónica. Mais: em regime de after hours, o evento prolonga-se pela primeira vez noite adentro em espaços como o Edifício Transparente, o Pérola Negra ou o Indulgent.
Voltando ao recinto do Parque da Cidade, que às 18h30, três horas após a abertura de portas, já se compunha. Alguns embalavam-se nas atmosferas únicas e misteriosas de Surma, no Super Bock, outros perdiam-se na introspeção do californiano Christian Lee Hutson, no Vodafone, mas muitos eram os que suavam hipnotizados para lá das paredes negras de um enigmático cubo preto.
Como é que um espaço que não figura sequer nos horários gerais do site do festival está cheio de gente? O novo palco, que herda o nome da marca de automóveis patrocinadora, Cupra, tem uma programação curada por talentos emergentes da música eletrónica e urbana, e, ao arranque do primeiro dia, era o que mais mobilizava o escalão sub-30.
Runnan abria as hostilidades na pista, recheada, em contraste com público rarefeito no imenso prado verdejante do Parque da Cidade. Durante cerca de duas horas, a DJ e produtora brasileira, co-fundadora de dois eventos queer na Invicta, Lombra e Bunda em Brasa, esteve imparável na cabine, de leque erguido, impregnando techno de energia de baile funk. Dançava-se como se não fossem seis da tarde, mas seis da madrugada.
No Cupra, cada corpo dava tudo o que tinha como se o mundo fosse acabar amanhã, sentimento semelhante àquilo que se viria a passar no palco Vodafone, pouco depois das dez da noite. O registo foi completamente diferente, mas a finitude era a mesma.
Anohni, vestido até aos pés, aparecia em palco branca e linda, tal e qual um coral morto. I’m dying now, ela e os filhos dentro dela, canta em Manta Ray. E se a sua voz (que voz!) não bastasse para nos cravar a urgência ambientalista da sua mensagem, havia o testemunho de cientistas com quem falou a propósito da sua última visita à Austrália, para documentar a destruição da Grande Barreira de Coral e fazer o seu luto, a corroborá-la.
Mourning the Great Barrier Reef é precisamente o nome do espetáculo que Anohni and The Johnsons trouxeram ao Primavera Sound Porto, festival por onde passaram há 10 anos, ainda Anohni era Anthony. Nessa altura, todos os palcos pararam para que o silêncio imperasse. Esta noite, não foi preciso decretar qualquer suspensão: o público, com os pés firmes na relva, deixando apenas o corpo a balançar como as algas na corrente, fez-se silêncio, fez-se fundo do mar.
Ao longo de praticamente uma hora, Anohni cantou a nossa elegia. Chorou a morte dos corais e a nossa própria morte, enquanto no ecrã gigante atrás de si passavam imagens do recife, as tais que documentou com um grupo de cineastas e biólogos marinhos. Chorou como um coral prestes a morrer, dando a sua luz mais bela e garrida antes de se branquear devido ao stress térmico.
Em 4 degrees os holofotes tingiram a túnica branca de Anohni de vermelho, a terra a queimar com o aumento da temperatura, o risco de quase 30% das espécies enfrentarem a extinção, segundo a Associação Americana para o Avanço da Ciência. I wanna see this world / I wanna see it boil / It’s only four degrees, canta, para mais tarde se questionar, em Hopelessness, como é que me tornei um vírus? Desta vez amarelada, como uma doente terminal.
Entre as canções, com arranjos subtis dos The Johnsons, tão subtis quanto o equilíbrio das espécies, iam passando os tais testemunhos dos cientistas, interlúdios de uma narrativa maior que viajou desde I’m a Bird Now (2005), do qual se ouviu a sororidade de You Are My Sister, até ao mais recente álbum My back was a bridge for you to cross (2023). Praticamente vinte anos cosidos como se este momento já estivesse a ser escrito antes de Anohni e de Anthony, o mesmo corpo, existirem.
Pelo meio, um canto espiritual afroamericano nascido da orfandade da escravatura. Interpretando Sometimes I Feel Like a Motherless Child, Anonhi encarnava Nina Simone, Billie Holiday e todos os frutos estranhos que continuam pendurados em árvores cheias de sangue. E se o sabor a ferro ainda não nos chegou à boca, é porque estamos com as papilas cegas.
No fim do concerto, entre lágrimas e pessoas emocionadas, entrelaçadas num código genético de amor e empatia, falou-se de esperança. Falou-se em transformar a dor e o luto em energia, motor para inspirar os outros, como ouvimos de uma das testemunhas. “O luto é um ato de amor e de cuidado”. Ou, como diria o poeta e ensaísta Ocean Vuong, “o luto é provavelmente a última tradução do amor”.
Precisamos todos de um outro mundo. Vamos sentir a falta deste, ouve-se em Another World, nos últimos silvos do concerto. Vamos, sem dúvida, sentir a falta de Anohni quando esta primavera passar. Será que da próxima vez que nos virmos não estaremos todas de vestido até aos pés, tão belas, tão brancas?
Se Anohni foi coral, os Fontaines D.C. foram melancia, com o frontman Grian Chatten a passar grande parte do concerto agarrado à bandeira da Palestina como se fosse a bandeira da sua Irlanda. Vistas bem as coisas, as cores em pouco diferem e quando se trata de opressão e ocupação, cores e lutas tornam-se uma mancha só. Nos ecrãs laterais, tal e qual como aconteceu no Primavera Sound Barcelona, leu-se Free Palestine e Israel is committing genocide. Use your voice, enquanto soava I Love You.
observador